sexta-feira, 4 de julho de 2014

A INVENÇÃO DO TURISMO EM SANTA CATARINA

Embora já constasse nos discursos e planos de governos anteriores aos anos 1980, a atividade turística somente vai se tornar um objeto importante de preocupações políticas a partir deste período, principalmente após as grandes enchentes ocorridas no Estado em 1983 quando, segundo aponta a pesquisa de Zanella (1999), o turismo entra na ordem do dia como uma das alternativas econômicas para colaborar na reconstrução do Vale do Itajaí. Basta lembrarmos que as festas de outubro são inventadas justamente após as enchentes que se abateram sobre Santa Catarina. Sendo alçado à condição de alternativa prioritária para a reconstrução das regiões atingidas no Estado, o turismo passa a nortear as políticas de desenvolvimento dessas áreas. É nesse contexto que deve ser compreendida a utilização da cultura local pelo turismo, que implicou a tentativa de consolidação social da mesma. Assim, assistimos ao surgimento do fenômeno da “invenção das tradições”. Isto é, a produção de espetáculos, baseados na temática dos distintos processos de colonização do Estado. Isso se dá através da colocação, em primeiro plano, dos componentes étnicos como explicativos das diversidades regionais catarinenses. As colonizações alemã e italiana, por exemplo, pautam a propaganda turística no Vale do Itajaí, no Norte e no Sul do Estado. E a colonização açoriana configura-se como elemento importante no turismo litorâneo, em especial na Ilha de Santa Catarina. É por isso que, a partir de meados de década de 1980, os documentos oficiais, propagandas turísticas e mesmo artigos científicos acabam citando e descrevendo as diferenças regionais catarinenses através das distintas formas de colonização que são aproveitas como ingredientes da visitação turística. Essa valorização do componente étnico, é importante registrar, é uma estratégia já clássica de criação de nichos de mercado no turismo. Basta mencionarmos as experiências européias, nas quais as diferenças de língua, alimentação, comportamentos, folclores, são aproveitadas como mecanismos de afirmação e recriação de identidades locais e, é claro, de produção do turismo, através do resgate do passado, transformado em mercadoria. Contudo, é necessário registrarmos um paradoxo: ao mesmo tempo em que se busca resgatar as tradições em benefício da indústria do turismo, os modos de vida não regidos por relações tipicamente capitalistas entram em processo de decadência e mesmo de extinção. O caso mais evidente é percebido no litoral, onde as comunidades pesqueiras e artesanais, isto é, baseadas na pequena produção mercantil, foram sendo paulatinamente expropriadas e transformadas em trabalhadores assalariados. A expropriação se dá pela perda da possibilidade de uso e ocupação do solo, traduzida na fragmentação das propriedades, na venda dos terrenos que posteriormente serão utilizados para veraneio, construção de edifícios residenciais, comerciais ou hoteleiros, de modo que, com o passar dos anos, em muitas comunidades ocorreu um rápido processo de perda das terras, com a conseqüente impossibilidade de ser mantida a pequena lavoura tradicional (sabe-se, por exemplo, que até o início dos anos 1970 havia lavouras de milho e mandioca no Norte da Ilha de Santa Catarina). Paralelamente, por conta das dificuldades da pesca artesanal, ocasionadas principalmente pela concorrência com os barcos de pesca (economicamente mais eficazes na pesca de alto-mar), os pescadores foram sendo transformados em trabalhadores assalariados. Além disso, com a introdução de uma infra-estrutura turística, as famílias desses pescadores foram sendo absorvidas parcialmente nas funções subalternas da escala ocupacional (nos setores de hospedagem e alimentação). Completaram-se assim as condições plenas para a introdução de novas relações sociais, de cunho capitalista, no litoral catarinense. E justamente quando um modo de vida se desestrutura surgem as possibilidades de inseri-lo, de forma caricaturada, como atrativo turístico. Esta é uma das peculiaridades mais marcantes do turismo contemporâneo, assinalada recentemente por Ouriques (2005). Esse argumento também é desenvolvido por Canclini (1983), que também apontava que a “fascinação nostálgica pelo rústico e pelo natural é uma das motivações mais invocadas pelo turismo” (p. 66). Para este autor, embora o objetivo básico do sistema capitalista seja a apropriação da natureza e a subordinação de todas as outras formas de produção à economia mercantil, “esta indústria multinacional que é o turismo necessita preservar as comunidades arcaicas como museus vivos” (idem). Ressalte-se que esse processo, como tudo o mais, não é exclusivo e específico do território catarinense. Vários pesquisadores já relataram situações similares de resgate das tradições, de forma inventada, como por exemplo John Urry (1996), que fala da “autenticidade encenada”, citando o caso de uma cidadezinha da Inglaterra na qual as pessoas estariam, cada vez mais, utilizando trajes medievais, com o intuito de fazer com que os turistas tivessem um contato visual e tangível com o passado. Também são inventadas “tradições novas”, especificamente para atender aos turistas. No Nepal, por exemplo, “o festival de Ladakh, realizado na primeira semana de agosto, foi criado recentemente pelo Serviço de Turismo com o único intuito de atrair visitantes” (Schackley, 1999: 28). O fato é que a cultura local é transformada em bem de consumo, equiparada a quaisquer outras mercadorias, como denuncia Robinson (1999): “cerimônias religiosas, ritos e festas étnicas são constantemente empobrecidos e asseptizados para corresponder às expectativas dos turistas” (p. 22). O mesmo tipo de crítica é efetuado por Schackley (1999), que mostra como o sucesso do budismo no Ocidente transformou-o em atração turística: “essas festas, com suas magníficas danças com máscaras, cumpriam antigamente um papel essencial na aproximação das comunidades isoladas. Hoje, porém, freqüentemente são transformadas em produtos culturais para turistas. Em decorrência de seu sucesso comercial, as práticas tradicionais foram descaracterizadas, e as populações locais afastaram-se” (p. 28). Voltando ao espaço catarinense, não é surpreendente os esforços dos capitalistas do turismo, da imprensa e dos políticos em promoverem, por exemplo, “o manezismo”, “o modo de vida ilhéu” e, indo para o interior, as culturas “européias” dos colonizadores do Estado de Santa Catarina. Trata-se, para o caso da grande Florianópolis, em especial, de transformar algo que até bem recentemente era ofensivo (isto é, ser “mané” era sinônimo de ser “atrasado”, “bronco”) em uma forma de autovalorização. Duplo objetivo: ideologia de cunho político, que aparece geralmente em períodos eleitorais (isso apareceu fortemente em Florianópolis nas eleições para a prefeitura em 1992 e 2004); e, principalmente, transformação do “manezismo” em equivalente de uma “identidade açoriana”, vendida como atrativo turístico. Assim, as escassas rendeiras hoje em atividade já são objetos de atração turística e mesmo os pescadores mais velhos em breve serão acompanhados em suas baleeiras pelas hordas de turistas, ávidos por presenciar uma “atividade arcaica”. Aliás, isso já ocorre com o arrastão da tainha no litoral catarinense, quando os turistas têm uma vivência participante (para usar uma expressão dos antropólogos) e ajudam a puxar a rede para a praia em troca de fotos e do peixe. E voltam para a casa felizes por terem participado de uma pescaria... Até o turismo religioso catarinense, que vem tendo importante impulso com a canonização de Madre Paulina (ocorrida em 2002), como já mencionado por Ouriques (2002), implica indiretamente a reinvenção da tradição, além da mercantilização progressiva da fé. Isso porque a prefeitura municipal de Nova Trento, através de decreto, transformou 36 igrejas, capelas e oratórios em patrimônios históricos e culturais. Nas escolas, os estudantes vêm recebendo aulas sobre Madre Paulina, além de instruções de como receber e tratar bem aos turistas e – e é isso que queremos registrar – até mesmo um antigo e extinto grupo de danças típicas italianas foi reativado para se tornar mais uma atração turística. Como último exemplo, cabe mencionarmos o artigo de Savoldi (2001) que mostra como, no município catarinense de Urussanga, em nome de um passado “italiano”, chegou-se a inventar uma “dança típica”. Isso porque foi criado um grupo de dança italiana, baseado na tarantela. Contudo, essa era uma dança comum no Sul da Itália, em Nápoles. Na região do Vêneto, de onde vieram os antepassados dos habitantes locais, não havia nenhuma espécie de dança, segundo a pesquisadora, já que por conta da opressão religiosa, a dança era considerada uma atitude pagã. O traje típico com o qual os “italianos” de Urussanga dançam a tarantela napolitana não existia no Norte da Itália, de onde vieram seus avós e bisavós. Trata-se de um espetáculo turístico baseado em uma falsificação da história... É preciso registrar que todo esse movimento de “resgate das tradições”, “recuperação da cultura local”, tem que ser compreendido, a partir da perspectiva crítica, como componente intrínseco da atividade turística, que busca incansavelmente mecanismos para se expandir. A indústria do turismo, portanto, transforma as manifestações culturais em espetáculos para turista e inventa tradições étnicas, mesmo quando essas são desvinculadas de uma base histórica anterior efetiva. E isso não é surpreendente, em uma época em que parecer já é até mais importante do que ter, como nos lembra Debord (1997).

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